Quando se é criança, viagens de carro para a casa dos parentes são como o Jogo da Cabine do SIIIIIIMMM ou NÃÃÃÃÃO que passava no Silvio Santos. Você entra no veículo sem a certeza de que haverá algo divertido ou interessante para fazer quando chegar ao seu destino. Pode ser algo legal, como ganhar todos os prêmios, ou um dia aborrecido, como quem ganha um chiclete mascado pelo Marquito.
E foi nesse clima de “Veeem pra cá, Rafael, HIHI! Você aceita trocar esse Televisor 42 polegadas por um Juicer Walita? ELE ACEITA OU NÃO ACEITA, LOMBARDI?” que entrei no carro com meus pais para uma viagem que até hoje eu não sei muito bem classificar. Íamos pra casa de uns tios ver a minha avó materna, que me disseram estar bem doente.
Depois de uma hora e pouco na estrada, chegamos ao nosso destino, uma típica rua do interior paulista, com asfalto irregular e casas simples. Ao fundo era possível ver a serra e o céu estava muito azul, uma paisagem igualmente comum – e belíssima – do nosso interior.
Havia uma turma de uns 5 ou 6 garotos brincando na calçada à frente da casa dos meus tios. Com 15 anos de idade eu me achava muito adulto, então, ao ver aqueles meninos de (creio) 12 ou 13 anos, me senti um grau acima na cadeia alimentar.
Quando descemos do carro e tocamos a campainha, um daqueles meninos falou que poderíamos entrar. Era meu primo (e aqui, peço perdão a você, primo, caso esteja lendo. Não tenho certeza se me lembro do seu nome), um menino muito alegre e com aqueles exibicionismos comuns de criança (que eu tenho até hoje, aliás).
“Olha só, eu tenho o boneco do Rider e o chinelo do Rider”, disse ele me mostrando seu brinquedo do Kamen Rider e seu chinelo fabricado pela marca gaúcha de calçados. Eu também tinha um boneco do Kamen Rider e também usava aquele tipo de chinelo, então me identifiquei com aquele menino e baixei um pouco a guarda que a adolescência impõe.
Depois das apresentações e de ouvir os “nossa! Como ele tá grande!” dos parentes, fiquei junto com os meninos na calçada, onde eles jogavam Yugioh com aquelas cartinhas que vendiam em banca. Tentaram me ensinar alguma coisa do jogo enquanto falavam sobre cartas fortes e sobre as trocas de figurinhas que faziam.
“O fulano ‘tungou’ seu primo. Trocou com ele uma carta que tem 0 de ataque”, disse um dos garotos. “Ah, mas é que o efeito dela é boa!”, refutou meu primo. Aprendi que “tungar” devia ser alguma gíria para enganar, ou algo do tipo, mas antes que eu pudesse adentrar mais naquele universo de cartas de 1000 de ataque, magias e tungadas, minha mãe chamou para ver minha vó. É aqui que a razão de eu estar te contando essa história começa.
Também não me lembro onde estava minha irmã até esse momento, mas ela foi junto comigo até o quarto. Devia ter seus 10 anos de idade.
O quarto estava um pouco escuro e minha vó estava deitada, como se estivesse dormindo. É um pouco difícil descrever essa cena, pois a vó Henriqueta sempre foi uma pessoa que não parava nunca. Tinha suas manias engraçadas e sempre brincava comigo quando nos visitava. Entretanto, a pessoa que estava ali permanecia imóvel, sem qualquer tipo de reação, com os olhos entreabertos.
Minha mãe gentilmente se aproximou dela trazendo eu e a Beatriz. “Olha quem veio ver a senhora, mãe. O Rafa e a Bia”. Uma lágrima escorreu pelo rosto da vó Henriqueta. A única reação que o estado avançado da doença lhe permitiu.
Demos um beijo nela e só então caiu minha ficha do que estava acontecendo. Dificilmente minha avó sairia daquela situação. Depois de alguns minutos desejando melhoras para aquela velhinha que parecia nem estar nos ouvindo, saímos do quarto.
Eu estava tão triste quanto a minha limitada consciência permitia. Do outro lado da porta estava meu primo, que me chamou pra jogar videogame. Na verdade, ele jogou e eu só assisti. Olhando um pouco para a tela e um pouco para o menino, pensei que aquela cena que tanto me abalou era algo que estava do lado dele todos os dias, entretanto, sua inocência permitia-lhe ser alegre mesmo em meio àquilo tudo. Isso me ensinou.
Acho que muitas vezes a gente confunde “ser inocente” com “ser bobo”. Ser inocente como uma criança não significa fechar os olhos para o que há de ruim, mas optar por levar uma vida guiada pela leveza, guiada pelas coisas boas que temos ao nosso redor.
Decidi que, independente do que acontecesse com a vó Henriqueta, escolheria lembrar dela como ela era, e não como a doença a deixara. As memórias que tenho com ela são algumas das melhores da minha infância, e sempre será assim.
Ela brincando de Lego, ela sendo personagem dos teatrinhos que eu fazia, ela vendo futebol comigo e me perguntando se “Umbro” era “ombro” em inglês… não existe doença que apague os bons momentos. Somos a soma das nossas memórias.
A vida acontece. Quer você fique firme ou se deixe abalar, a vida acontece. Essa escolha pode não impedir o trem de andar, nem fazê-lo correr mais rápido, mas vai ditar o quão bem você aproveitará a viagem.
Poucos dias depois, recebemos a notícia do falecimento da dona Henriqueta. Ela descansou. Foi daquelas despedidas tristes pela perda de uma pessoa tão querida, mas reconfortante por saber que o sofrimento dessa pessoa acabou.
No enterro havia muitos primos que eu e a Bia ainda não conhecíamos pessoalmente e outros que estávamos com saudades depois de um tempo sem vê-los. Foi uma oportunidade de relembrar as histórias legais da vó e de nos despedirmos dela.
Muito maior do que o laço de sangue, algo nos unia naquele momento. Ali, todos éramos iguais.
Éramos crianças do interior.
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