Certos vícios marcam a vida das pessoas de maneira irreparável. Eu nunca usei drogas ou fumei um cigarro, mas já fiz pior: fui jogador de Tibia durante alguns anos.
As lan houses foram a casa de muitos adolescentes em meados dos anos 2000, e comigo não era diferente. Muito do que aprendi sobre cidadania e vida em sociedade foi dentro deste ambiente inóspito.
Uma das lições aprendidas a duras penas foi a de jamais confiar seus itens digitais a estranhos, especialmente se eles forem pessoas estranhas. No caso do Tibia, esse cuidado era redobrado, pois os itens eram difíceis de conseguir, e havia um meliante a cada esquina virtual, pronto para websubtrair o fruto do seu websuor.
Se você não conhece o Tibia, vou te fazer uma breve apresentação: é um RPG online lançado em 1997, com gráficos de 1970 e sem qualquer música ou efeito sonoro. Mas o mais impactante do Tibia não é a sua arte arcaica, e sim o seu sadismo. O Tibia é um jogo cruel. Um simples vacilo e o progresso de meses de jogo estava perdido. Uma briga com outro jogador por causa de uma moeda no chão e todo o time dele caçaria você para sempre.
Talvez toda essa adrenalina e incerteza fossem os atrativos do game. Ele era muito parecido com a vida real nesse aspecto. Você podia entrar nos esgotos da cidade pra caçar ratos enquanto esperava seus amigos chegarem pra dar um rolê, igualzinho a realidade.
E é nesse contexto de emoções à flor da pele e perigos iminentes que eu me encontrava em 2005. O ar condicionado da lan house não era capaz de conter o suor de nervosismo das minhas mãos enquanto eu caçava trolls em uma caverna junto com um amigo, que na época trabalhava na prefeitura da cidade (e estava jogando de lá de dentro. DENÚNCIA!).
Enquanto eu jogava com toda cautela, um suspeito rapaz se aproxima do meu computador: o típico nerd, com o rosto oleoso, bochechas muito rosadas e óculos grossos. “Ah, você está jogando Tibia?”, disse ele. “Tô”, respondi, numa mistura de simpatia com estranhos e receio de estranhos.
Ele mandou um “ah, legal”, saiu entre as fileiras de computadores e minutos depois voltou, sentando à máquina ao meu lado. O menino abriu o game e começou a me mostrar seus itens valiosos, muito superiores aos meus, contando suas histórias de como foi difícil conseguir tal espada e tal armadura.
Confesso que ali ele ganhou minha simpatia, e fiquei contente com algumas dicas que ele me deu. Porém, como nem tudo são flores, uma hora começou a encher o saco, pois ele palpitava em cada movimento meu, e como um bom adolescente, eu detestava que me dissessem o que fazer. O garoto tava quase tirando o mouse da minha mão pra controlar o personagem.
Em certo momento, ele disparou: “você pode ir fazer a missão do Legion Helmet”. Legion Helmet era o nome de um capacete muito poderoso para o nível que eu me encontrava. O problema era: para chegar até o almejado item, o jogador precisava descer uma caverna secreta e atravessar um labirinto de chamas, chegar até o corpo de um dragão morto e resgatar seu merecido prêmio.
Assim como na vida real, se você tivesse de correr por um caminho tortuoso com o corpo em chamas, as chances de morrer carbonizado são de cerca de 50%. Ou morre, ou não.
Disse pro cara que não dava pra ir, pois meu personagem era muito fraco, que mais pra frente eu iria. Seria loucura atravessar o caminho em um nível tão baixo. Ele ficou calado e voltou para o próprio game. Poucos minutos depois, meu tempo na lan house se esgotou.
Caso você não se lembre, quando o tempo na lan house acabava, sua tela era automaticamente bloqueada e você não conseguia mais fazer nada até que o funcionário liberasse o acesso. Como meu personagem estava a salvo dentro da cidade nesse momento, não me preocupei.
Agradeci o recém-colega pelas dicas, coloquei a mochila nas costas e fui embora. Ao chegar em casa, um pensamento repentino me assombrou: O garoto poderia muito bem ter pedido ao carinha da lan house pra trocar de computador e ter acesso total ao meu personagem. Poderia matá-lo de propósito para atrasar meu progresso ou para roubar o pouco dinheiro que eu tinha.
Fiquei catatônico! Durante todo aquele fim de tarde fiquei pensando nisso. Esperei a meia noite, horário em que a internet discada ficava praticamente de graça para ser utilizada, liguei o computador escondido dos meus pais (aliás, se vocês estiverem lendo esse texto, peço desculpas por esse ato de desobediência do Rafa do passado. Era uma situação de emergência!) e abri o Tibia.
Ao acessar o mundo virtual, deparo-me com uma tela diferente da que eu deixei meu alter ego digital na lan house. O desgraçado havia mesmo acessado minha conta! Porém, meu pequeno guerreiro estava numa caverna com todos os seus bens intactos. À sua frente, o corpo de dragão derrotado contendo o valioso capacete.
Certos vícios marcam a vida das pessoas de maneira irreparável. Foi nesse dia que eu descobri que num antro de aproveitadores impiedosos também existe gente de bom coração.
Esse herói anônimo acreditou no meu webpotencial quando eu mesmo não webacreditava. Nunca mais vi o rapaz, mas seu exemplo me acompanha até hoje.
Aquele equipamento me pertenceu durante uma semana apenas. Dias depois do ocorrido, meu personagem (chamado “S1lvioSantos”) foi alvo de um brutal ataque. O autor do assalto ria a cada golpe, ignorando meus pedidos por misericórdia. Seu nome era Pedro_de_Lara.
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