Esperança e Desencanto: A jornada de um cagão na terra dos bisturis

A primeira vez que eu me lembro de ter sentido a dor de um coração partido, não foi no coração. Como um amargo desencanto, essa dor chegou num momento de extrema fragilidade. Na calada da noite, acordei com a barriga parecendo o Boi Bandido quando vê aqueles caras vestidos de palhaço no rodeio.

Na inocência, pensei que estava com um grave caso de gases, mas não conseguia fazer força pra ejetar o enxofre. Fui até a cozinha e tomei um comprimido de Luftal.

Não tinha como dar errado, com a única exceção que tinha muito como dar errado. As dores não passaram e minha irmã (que dividia o quarto comigo) certamente não teve uma noite das mais agradáveis. Não é sempre que a gente acerta na vida.

Naquela noite eu dormi igual um recém-nascido: bonito e acordando a cada 20 minutos.

De manhã, a dor era tanta que já acordei pensando em como escreveria meu testamento e com quem ficariam meus bens conquistados ao longo de uma vida inteira (22 anos).

Aí você me pergunta: “Rafão, essa história é só sofrimento?”. Não, mas por enquanto, sim. Quando levantei, pedi que me levassem ao hospital, e é aqui que a porca torce o rabo, porque além da dor, eu fiquei com ódio no coração.

Meus pais me disseram que possivelmente era um caso de apendicite. Ao ouvir esse nome, percebi que eu estava sofrendo um ataque do meu próprio corpo. Uma rebelião biológica que precisaria ser contida a qualquer custo.

O mais difícil da dor no apêndice não é nem o fato de parecer que seu estômago tá tentando escapar da barriga usando uma faca cega presa em uma furadeira, mas é a raiva de saber que não teve nada que você fez pra merecer aquilo. Não tem genética ou contaminação. A meritocracia dos hábitos saudáveis importa tanto para o seu apêndice quanto o Palmeiras importa para o Vampeta.

Chegando ao hospital, já me senti tranquilizado. Por um momento, até esqueci da mazela que me afligia. O médico fez algumas perguntas simples sobre a dor e me pediu pra deitar na maca. Aí ele apertou minha barriga e eu dobrei 90 graus, igual um grampeador grampeando seu dedo.

“COMO QUE VOCÊ APERTA O TEU PACIENTE ONDE ELE FALOU QUE TAVA DOENDO IGUAL O TRIDENTE DO SATANÁS COM ARAME FARPADO?”, pensei.

O doutor pediu alguns exames e disse que suspeitava de apendicite. Por mais que ficasse contente em pensar “meus pais tinham razão”, aquele foi o primeiro momento da minha vida adulta em que o desfralde se mostrou realmente vantajoso. Fosse diferente, eu teria recheado a Pampers assim que percebi que, se o diagnóstico fosse confirmado, eu teria de ser submetido a uma cirurgia.

Fiz exames de sangue e de urina, mas ainda faltava o principal: a tomografia. Me pediram pra assinar alguns papéis que diziam basicamente que se eu morresse fazendo o exame, não valia dizer que a culpa era do hospital.

Perguntei ao técnico que realizaria o exame como seria possível morrer fazendo a tomografia. “Se você for alérgico a iodo, o contraste que é injetado pode te fazer mal, mas é difícil achar alguém que é alérgico. Quando você come peixe, você tem algum enjoo?”. “Eu não como peixe”, respondi. “É…”. É.

Naquele momento pensei que, se fosse mesmo a minha vez de partir desse mundo, não tinha como escapar. Um meteoro ia cair no hospital, alguém me faria beber 2 litros de Dolly limão ou sabe-se lá que outra tragédia aconteceria, MAS, se Deus tivesse decidido que ainda não era a minha hora, não seria um examinho que ia me matar.

Pode ser que eu tenha pedido pro meu pai ficar na sala acompanhando o exame? Pode ser, mas esse não é o ponto. O ponto é que a coragem adquirida naquele momento me preparou para uma das passagens de maior impacto da minha vida: eu seria ou não operado?

O medo de ser aberto com um bisturi era grande. Voltei ao escritório do médico com todos os exames embaixo do braço.

“Espero que não seja nada”, eu disse. “E eu espero que seja! Eu adoro operar!”, disse o médico enquanto abria os exames.

12 horas depois eu estava entrando na sala de cirurgia para remover o apêndice.


Publicado

em

por

Comentários

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *