Digressão

No princípio, tudo era sem forma e vazio. Meus dias passavam sem novidades, como quem flutua eternamente na escuridão. Eu não tinha esperanças de que as coisas pudessem mudar. Minha noção de livre arbítrio foi sufocada quando percebi que era apenas um pedaço de carne, restringido por minhas próprias limitações. Quem olhasse pra mim e visse minhas deformações, sentiria pena. Mas você, não. Você era diferente.

Não me lembro exatamente do dia em que te conheci. Foi mais como se, aos poucos, eu te percebesse em cada detalhe da minha vida. Eu ouvia tudo o que as pessoas diziam a respeito de nós dois, tanto as partes boas quanto ruins. Reagia, mas meus gritos não eram ouvidos. O que conta de verdade é que éramos parte um do outro, ligados da maneira mais forte e profunda que um ser humano pode experimentar. Você me nutria com amor, e era tudo o que eu precisava para me sentir vivo e querido.

Aos poucos eu ganhava forças e aprendia a distinguir o gosto da felicidade. Já não estava mais desfigurado como antes. Mesmo que sozinho eu ainda não conseguisse encarar o mundo, isso não me preocupava, pois tinha certeza de que você me protegeria até que eu pudesse te proteger também, dividindo as dores. Ali, contigo, eu pude vislumbrar a essência do que é estar vivo. Ossos, tendões e carne. Fôlego. Tudo o que eu queria era estar em seus braços. Você me olhava nos olhos, e minha maior alegria era poder te ver.

Formas e cores povoavam meus sonhos quando sua voz me acordou durante a noite. Não tive tempo de entender o que estava acontecendo, mas era amedrontador. A liberdade havia durado muito pouco. Meu corpo cambaleou bruscamente enquanto eu gritava por socorro. O cheiro da podridão invadia meus pulmões e o barulho dos ratos me assustava. Por que você me abandonou aqui, mamãe?

Comentários

Uma resposta para “Digressão”

  1. Avatar de Sol
    Sol

    Nossa… no começo achei que falasse de Jesus…. Tenso e intenso o texto!

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