“A medicina evolui a cada dia. É por isso que o melhor dia para ir ao médico é sempre amanhã.” Era assim que eu pensava antes de realmente precisar de um médico, que no caso, foi quando eu tive de ser operado.
Inclusive, já escrevi sobre como foi o diagnóstico pré-cirúrgico. Se você ainda não leu, leia antes dessa crônica. Vai ser como assistir A Múmia 1 e depois A Múmia 2. Aliás, se você é criança, fica aqui um aviso. Esse é um texto que talvez seus pais não fiquem contentes se você ler. Mostre pra eles antes, ok? É sério. Avisos dados, vamos à historinha de hoje.
A ideia de ter seu corpo aberto com o auxílio de instrumentos afiados assusta a maioria das pessoas, e comigo não era diferente. Mesmo assim, deitado no leito hospitalar, dormi semitranquilo. Eu tinha um plano infalível: ia pedir para ser sedado durante o procedimento cirúrgico para a remoção do apêndice.
A anestesia é uma das grandes invenções da medicina. Imagine voltar ao ano 1164 e dizer às pessoas que no futuro alguém poderia rasgar a sua barriga com uma lâmina, mexer nas suas entranhas, costurar tudo de volta e você não sentiria NADA. Eu duvido que alguém acreditaria em você. Eu mesmo não acreditaria em você.
Voltando à história, tive de passar a noite internado e sem comer nada, mas uma coisa curiosa sobre o soro é que você não sente fome enquanto tá plugado naquela bolsa de líquido. É uma parada meio “eu comeria um parmegiana AGORA, mas se não tiver, beleza também”.
De manhã, me levaram numa cama de rodinhas até um elevador comprido, e de lá, para a sala onde eu seria rasgado e costurado. Esperto, já entrei falando ao enfermeiro que gostaria de ser sedado, ao que ele respondeu “essa cirurgia aqui tem de fazer acordado, que se algo der errado, você vai avisar a gente”.
Veja, eu não estava com o psicológico preparado para avisar coisas durante uma cirurgia, mas antes que eu tivesse tempo de protestar, me aplicaram aquela injeção de anestesia na coluna e eu não lembro de mais nada, mas não é como num sono, que você sabe que o tempo passou. Não! Num segundo era “vou aplicar a anestesia” e no seguinte eu estava deitado em outro quarto com várias pessoas em macas ao redor.
Eu não conseguia mover meu corpo muito bem, e deduzi que já tinha sido operado. Ao meu lado, um velhinho se recuperava de seu procedimento, e foi aí que veio um dos maiores autodesafios que já me impus: eu deveria ser capaz de me mover antes do vovô.
Com 23 anos de idade na época, julguei ser minha obrigação demonstrar maior poder de regeneração do que um sexagenário. Foquei minha total atenção nos dedos dos pés. Todas as células do corpo unidas em prol de um único ideal.
Logo já conseguia mexer os dedos e os pés. Pouco tempo depois, eu estava no completo comando do meu corpo novamente. Tipo uma possessão espiritual, só que era eu mesmo possuindo meu corpo.
Fui levado para o quarto ainda na cama de rodinhas, e foi lá que percebi que a anestesia talvez ainda estivesse presente nas minhas veias. Bem presente. Minhas pernas coçavam muito, e foi coçando que senti uma das sensações mais confusas (e desesperadoras) da minha vida. Minha mão bateu em algo, mas eu não senti a minha mão com esse algo.
Naquele momento, apenas meu pai me fazia companhia no quarto do hospital. Comentei que não sentia as partes íntimas corretamente. Ele me pediu pra verificar se tava tudo certo, porque podiam ter trocado minha ficha na hora de operar.
Ainda dopado pela anestesia, levei-o a sério, olhei e confirmei que estava tudo em ordem, mas continuei desesperado. Era como se uma parte do meu corpo não fosse minha.
Fiquei incomodado a ponto de perguntar pra qualquer pessoa do hospital que entrasse no quarto, ignorando todos os conselhos para manter a calma, que logo tudo voltaria ao normal. Eu tava meio grogue, mas acho que pedi diagnóstico até pra tia do café.
“Fica em paz que a vida não é só isso” foram as palavras de conforto e encorajamento que meu pai me disse naquele momento de angústia.
Pelo que me lembro, fiquei uma semana internado. Poderia ter sido um pouco menos se não fosse um detalhe importante: meu apêndice fez uma manobra diferenciada, tal qual um dançarino de freestyle, e acabou grudando no intestino. Por isso, foi necessário um pequeno corte no meu sistema digestivo para removê-lo.
Por causa desse corte, eu só poderia ser liberado pelos médicos depois que conseguisse defecar, indicando que tava tudo nos conformes. O que acelerou um pouco meu intestino foram as constantes perguntas. Existe algo um tanto desconfortável em lidar com desconhecidos perguntando 3 vezes por dia se você já cagou hoje.
No fim das contas, saí do hospital melhor do que entrei. Não só pela dor extinta e por agora precisar de um passo a menos para me tornar astronauta, mas pela transformação de vida que tive.
Entrei com medo, saí com coragem. Entrei doente, saí curado. Entrei mortal, saí lendário. Entrei segurando o choro, saí abraçando o travesseiro.
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