Sonhos de infância, algumas vezes, são realizados sem que a gente perceba. “Quando eu crescer, vou no mercado comprar todos os doces”, “Quando eu for grande, vou jantar pizza uma semana inteira”, “Quando eu tiver um emprego, vou comprar todas as figurinhas da Copa” e por aí vai.
São boas as chances de você não lembrar a primeira vez que foi ao mercado e comprou o sorvete que deu na telha (talvez até dois, se ficou em dúvida sobre qual sabor escolher), e é algo que você criança adoraria fazer!
Então. Dia desses eu realizei um sonho maluco de criança: comprei uma planta carnívora. Lembro muito bem a primeira vez que vi uma. Foi num ginásio esportivo aqui de Jundiaí, numa festa da cidade. Havia todo tipo de coisa, como aqueles sucos que vinham em embalagens de carrinhos, celulares e armas (esse da arma, meu pai nunca me comprou), filhotes para adoção e plantas decorativas.
Numa dessas barraquinhas, o vendedor mexia com um palito numa planta e, de repente, NHAC! A planta mordeu o palito. A tampa da minha cabeça voou no teto quando descobri que aquela plantinha não apenas mordia palitos, mas comia insetos! Vivos! Quando todos os seus outros amigos se alimentam de luz e canções de ninar, você digere outras pequenas criaturas. Não dá pra ser mais legal do que isso.
Naquele dia, eu estava acompanhado pelo meu tio, que não quis me dar uma daquelas plantas, claro. Ainda assim, a semente das carnívoras havia sido plantada em meu coração infantil, e passei a ler sobre aquela incrível espécie sempre que possível. Aliás, a planta que o homem cutucou com um palitinho de dente era um exemplar de Dionaea muscipula.
Ah! Não pesquisei o nome agora só pra parecer sabichão. É capaz que você duvide de mim, mas isso não faz diferença para o propósito dessa história. Vamos continuar!
Comprei a carnívora num dia em que fui procurar uma suculenta para dar de presente pra uma ex-namorada. Passeando pela loja, encontrei o departamento das carnívoras e, bem, a moça não foi a única a ter uma plantinha nova em casa naquele dia.
Ter uma planta carnívora foi uma alegria enorme. Estudei tanto sobre a espécie que me tornei um dos plantólogos mais renomados da América Latina segundo a minha mãe. Aquela alegria, entretanto, não durou muito. A planta exigiu que eu fizesse escolhas difíceis como se eu fosse o John Locke do Lost, mas com mais cabelo e menos facas.
Desde o começo, estabeleci uma regra: eu não colocaria insetos na planta. Deixaria que ela mesma caçasse seu alimento.
Entretanto, fazia mais de uma semana que a carnívora não se alimentava. Eis que surgiu uma oportunidade: uma abelha já moribunda entrou voando na sala durante a noite, com aquele voo confuso dos insetos que estão em seus últimos momentos. Ela se jogou contra a luminária diversas vezes e caiu no chão. Ainda viva, mas derrotada.
Nunca foi meu gosto matar insetos. Eu não gosto de vários deles, mas nunca tive essa urgência de matá-los. Mesmo assim, pensei no futuro da planta. Talvez aquela abelha fornecesse os nutrientes que minha carnívora precisava para viver por mais bastante tempo. Foi esse argumento que me fez parar de hesitar e, então, aceitei o fardo de capturar a abelha e inserir na boca da planta carnívora, uma morte lenta e um pouco sufocante, mas, uma morte que ela teria de qualquer jeito. Que fosse, poeticamente, vivendo através de outro ser depois da morte.
A música do Rei Leão tocava na minha cabeça. É O CICLO SEM FIIIIIIIMMMM / QUE NOS GUIARÁÁÁÁÁÁÁÁÁÁÁÁ
Com alguma ajuda, coloquei cuidadosamente a abelha em seu destino final. A armadilha da planta se fechou, abraçando o inseto que se movia lentamente.
Eu tive pena da situação, mas penso que fui aprovado no teste da natureza. Minutos depois, ao voltar para verificar se a abelha ainda agonizava, me deparei com uma cena mais triste que comprar um videogame no Paraguai, chegar em casa e encontrar um tijolo dentro da caixa.
O inseto havia escapado, e rastejava com dificuldade sobre o vaso. Não sei como, mas havia um furo em seu abdômen, e um líquido amarelo saía dali. Eu havia apenas piorado a situação da abelha.
Infelizmente, nenhuma outra boca da planta era grande o suficiente para comportar o inseto. Depois daquele dia, nunca mais tentei hackear a cadeia alimentar. Tive uma lição digna dos melhores animes: Misericórdia talvez não seja evitar a dor, mas torná-la mais curta e digna.
Posso dizer também que nunca mais fui bem quisto no círculo social dos apicultores, mas lições de vida têm um preço. Espero que um dia a indústria brasileira do mel possa me perdoar.
Hakuna Matata.
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